sábado, 6 de março de 2010

DEDICATÓRIA






Há mais uma confusão, com epicentro na Praça 8 de Maio, provocada pela exigência de pagamentos exorbitantes, aos comerciantes da Baixa de Coimbra, por licenças de utilização de estabelecimentos comerciais.

Não só por isso, mas também, é justa uma dedicatória a quem tanto se afadiga a fazer andar para trás aquele espaço. Aqui fica, com a devida vénia a Alberto Pimenta que, inspiradamente, escreveu:

Carta

1. se v. exa. me permite
eu gostaria de dizer o que penso.

2. em primeiro lugar penso
que v. exa. anda
no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio.

3. v. exa. dirá que eu estou afirmando 
que v. exa. anda para trás.

4. na verdade, nada me impede de afirmar que 
v. exa. anda para trás.
não foi isso porém que eu disse.

5. com efeito, não sei
se v. exa. anda para trás, segundo penso,
v. exa. anda no sentido oposto ao dos ponteiros
do relógio.

6. seria necessário poder afirmar com toda
a segurança que os ponteiros do relógio
andam para a frente, para poder afirmar
com igual segurança
que v. exa. anda para trás.

7. mas quem está em condições de 
afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente? ninguém está
em condições de afirmar com toda a segurança
que os ponteiros do relógio andam
para a frente, porque, cono v. exa. sabe,
os ponteiros do relógio andam à roda.

8. a única coisa que se pode afirmar com toda a 
segurança
é que os ponteiros do relógio andam
à roda para um lado e v. exa.
anda à roda  roda para o outro. os ponteiros
do relógio rodam para um lado e v. exa. roda
para outro. de modo que v. exa. com
o seu movimento anula o  movimento 
dos ponteiros do relógio e vice-versa.

9. na verdade é como
se v. exa. não andasse e como
se os ponteiros também não andassem.

10 com efeito, não creio que v. exa.
                               (ande para a frente
nem que v. exa. ande para trás,
                               (não creio que v. exa.
ande para cima nem que v. exa ande para baixo,
                                (não creio que v. exa.
ande para a direita nem que v. exa. 
                                (ande para a esquerda,
apenas suponho que v. exa. ande à roda
                                (de si mesmo,
no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio e,
ainda,
de olhos fechados, para não enjoar.

11. o que eu, em duas palavras,
                               (em segundo lugar penso,
é que v. exa. usa um instrumento de osso
                                (ou de plástico
com uma enfiada de pontas aceradas
                                (chamado pente,
a fim de estar sempre bem penteado, pois nada
perturba mais v. exa. que o receio de não
estar bem penteado, nada perturba mais
v. exa., e é por isso que só quando v. exa.
acaba por perder o cabelo todo se começa
a sentir um pouco à vontade.
                                (é, segundo suponho,
por isso.

12. de forma que a visão de
v. exa. e dos restantes concidadãos
andam todos à roda de si mesmos,
no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio,
de olhos fechados e cabelo cuida-
                                 (dosamente penteados
é um espectáculo alucinante,
que v. exa. infelizmente não pode apreciar,
por ter os olhos vendados.

13. claro que v. exa. julga que só v. exa.
faz o movimento que v. exa. faz, e o mesmo
julgam os restantes concidadãos, pois
todos se consideram uma excepção, um
caso único, especial, e no entanto todos
formam uma regra, no seu movimento regular, 
no seu círculo vicioso, 
à roda de si mesmos,
no sentido oposto ao dos ponteiros do relógio, 
de olhos fechados
e cabelos cuidadosamente penteados.
                                

Alberto Pimenta

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