quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

IMPRECAÇÃO AOS SANTOS



Este é o tempo de todos os balanços, mesmo para contabilistas leigos. Quer se queira quer não, por hábito ou convenção, somos chamados a fazer balanços das glórias e misérias que nos aconteceram, sempre que um ano acaba. 
 
Claro que já se esqueceu muito do que aconteceu e que nos deu uns dias tristes e melancólicos e outros felizes e eufóricos. Mas cada qual sabe de si e eu não me vou meter na vida de ninguém, nem vou trazer para aqui as horas que perdi de forma irreparável a fazer coisas para as quais agora não consigo encontrar pleno sentido. Deixo aos pacientes e benévolos leitores desta coluna a responsabilidade de se inventariarem e assumirem os seus deve e haver de mais um irrepetível ano de vida.

Não resisto, contudo, na minha solidão cívica e armado da afirmação de Torga de que “só depois de se ser autêntico se é livre”, dar conta de que este ano que agora acaba ainda não foi o ano radioso e especial que Coimbra tanto desejava. Apesar do sol abundante houve um cinzentismo pesado que continuou a pairar sobre a cidade. 

É verdade que se tornou patente a vontade de melhorar estética e funcionalmente espaços públicos e houve pequenas/grandes intervenções que contribuem para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos, e que também aconteceram e vão acontecendo coisas interessantes nas mais diversas áreas da vida coletiva, mas, sinceramente, continua a faltar qualquer coisa. Será visão, criatividade, planeamento, marketing? Não sei, mas que falta, falta! Por mais que se tente não se sente o élan coletivo que permita acabar com o triste desperdício do enorme potencial da cidade.

Porque há um novo ano à espreita, cheio de futuro, talvez um apelo ao divino. Esperar que apareça um “Bardo dos tempos novos, anunciando verdades”, como Eça viu em Antero, naquela noite macia de Abril ou Maio, nas escadarias da Sé Nova e o levou a criar o mito do Santo Antero.

Também invocar a nossa Padroeira para que floresçam parques, rotundas e separadores – talvez com roseiras várias –, porque a cidade precisa da cor e do perfume natural da bela mulher que sempre foi. 

Mais, que São Francisco interceda para que o seu Convento abra definitivamente as portas e que o abençoe para que não se fique por uma franciscana pobreza cultural mas que o transforme num instrumento de elevação do orgulho e da riqueza cultural de Coimbra e da Região Centro e da sua projeção a todos os níveis.

Finalmente, permitam-me mais uma prece. Rogo a Santa Cecília, Padroeira dos Músicos, para que faça o milagre de convencer os “maestros” da cidade a proporem à UNESCO, Coimbra como Cidade da Música.

Santo 2016!

(Artigo publicado na edição de 31 de dezembro de 2015, do Diário de Coimbra)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

VOTOS DE BAIXISTA



No tempo em que o cheiro do café torrado, acabado de moer no Loureiro dos Cafés, partia, dengoso, a passear pelas ruas da Baixinha esta era um sítio aprazível e apetecível para santos e pecadores. Nunca terá sido uma grande atração para Lentes, Doutores e Engenheiros que lhe encontravam o defeito, não confessado, de ser demasiado popular, mas de resto era ponto obrigatório para as compras regulares de abastecimento caseiro e as compras especiais para todas as festas. 

Ir à Baixa era também um encontro com os cheiros e os sabores dos petiscos partilhados com os amigos. Não eram petiscos gourmet, eram coisas substanciais carregadas de uma gordura requentada mas incapaz de qualquer acréscimo de colesterol e merecedora de três estrelas Michelin.

Mais, passar pela Baixa dava a certeza de que se cruzava com gente de todo o concelho e de toda a região e havia caras que levavam a um cumprimento rasgado, porque eram dali, ainda que não se soubesse nome nem apelido.

Acabado o Loureiro dos Cafés e os seus blend e tendo-se entrado no tempo das inodoras cápsulas de café, a Baixa foi perdendo algum do seu encanto. Fez-se lamúrias, acusatória e houve clientes, como um bom amigo que recordo com saudade, que lhe diagnosticaram uma fase obstétrica. Dizia ele que não era raro ir a uma loja procurar um artigo e receber uma resposta invariável: “De momento não tenho, estou à espera.” Este estou à espera, em modos parturiente, era sintomático das dificuldades de stok e do receio do amanhã.

Conscientes das dificuldades que se avolumavam fizeram-se estudos e publicaram-se teses sobre o assunto. O Ministério da Economia, publicou em 1999 uma obra de referência: “Urbanismo Comercial em Portugal e a Revitalização do Centro das Cidades” que considerava especificamente Coimbra e Aveiro. Também vieram analistas do reino e entendidos que nunca tinham ido à Baixa. Fizeram-se debates, tertúlias e jantares analíticos. Os resultados foram fracos. Até as arruadas das campanhas eleitorais começaram a rarear. 

É que o problema da Baixa é mais do que uma questão comercial, é uma questão de amor. Vai-se à Baixa porque se gosta. Gosta-se do espaço e das pessoas que o povoam. Gosta-se do ar que ali se respira. E por mim, que gosto muito da Baixa, estou certo que, mais dia, menos dia, surgirá uma Baixa vibrante, capaz de atrair novos clientes e fazer novos apaixonados. Imagino-a ancorada num projeto cultural em que não falte o swing musical que a torne numa “Little New Orleans”, para nossa felicidade e a bem do futuro de Coimbra.

São estes os votos de um baixista assumido.

(Artigo publicado na edição de 17 de dezembro de 2015, do Diário de Coimbra)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

O FAZEDOR DE PUZZLES



Não há governos perfeitos. Uns são melhores ou piores consoante os avaliadores e os seus interesses. É verdade que podia haver governos muito bons se os políticos de café, que sabem de tudo e resolvem tudo com uma facilidade mágica que faz inveja, tivessem disponibilidade para assumir cargos ministeriais. 
 
Contudo, na ausência da possibilidade da genialidade na governação, vamos ter de suportar os governos nascidos das eleições, o que diga-se para alguns não é nada fácil, levando muitas vezes a comportamentos ilógicos e contrários aos seus intentos. 

Neste momento, de arranque de um novo governo e no contexto de uma nova realidade política, não deixa de ser interessante registar as expectativas e os desafios que todos os dias são apontados ao novo primeiro-ministro, alguns na perspetiva de um rápido fracasso e outros na tentativa de influenciarem a agenda governamental, para o bem ou para o mal.

Há também quem entenda o momento político numa perspetiva de psicologia infantil em que à semelhança das crianças umas procuram fazer bem para serem elogiadas e outras limitam-se a fazer barulho para serem notadas  

Há ainda quem ponderadamente se prepare para uma observação desconfiada até porque há um passado de posições inconciliáveis que não é possível apagar e que não pode deixar de ter reflexos no presente, até porque o mundo da política é o mundo da conspiração e da intriga e o político militante por muito equilibrado que seja é sempre partidário.

O que parece evidente é que António Costa, na perspetiva de que a moção de rejeição apresentada pela PàF, que está a viver um momento traumático, será derrotada, verá o seu governo, para além da acrescentada estabilidade e durabilidade, reforçado com uma legitimidade, que deve agradecer aos que o acusam de ilegitimidade. 

Como se vê a PàF está a viver um pesadelo de que ainda não conseguiu acordar, não tendo percebido que há uma nova realidade com que tem de conviver. Dominada pelas saudades do passado agarra-se agora à esperança de uma eleição presidencial que a possa ajudar a evitar cair numa profunda crise de identidade e consequente conflitualidade intestina. 

O próximo presidente da República é assim a peça do puzzle que falta para completar e enquadrar a nossa vida política nos próximos tempos e aqui é bom lembrar que António Costa é um especialista em puzzles, pelo que pode vir a acontecer alguma surpresa numa eleição que à partida parecia ter vencedor certo.

(Artigo publicado na edição de 3 de dezembro de 2015, do Diário de Coimbra)

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

ENIGMAS E PARADIGMAS



É um privilégio viver em Coimbra, pelo que se tem e pelo que não se percebe não existir. Aqui pode-se usufruir de um conjunto de bondades e ser confrontado com a enigmática existência de algumas cápsulas do tempo que evitam aventuras contemporâneas e as ideias extravagantes que fazem bulir as cidades criativas. 

É um verdadeiro enigma a dificuldade de mobilização cívica numa cidade que se pretende não só estar entre as primeiras no ranking do país como manter e reforçar uma imagem extrafronteiras. O problema é que não se pode querer ser uma cidade diferente e de vanguarda quando se anda a reboque, quando anda, particularmente naquilo que caracteriza o nervo das cidades que importam.   

Vem isto a propósito da reação, melhor: da não reação, a questões civilizacionais, de valores e de princípios que são a cada momento postos pela globalização do mal e do terror. Não merece a pena preocupar-nos ou fazer nada seja o que for perante o que se está a passar em França, ou o que se vem passando, numa escala ainda mais aterradora, em tantos outros países.
O nosso conforto perante um incomensurável desconforto de milhares de seres humanos será um bem ou um mal? O que podemos fazer ou o que interessa aquilo que façamos se isso não conta para nada dirão alguns, aliás, dirá a grande maioria.

Pois é aqui que está a grande questão é que não se é uma cidade grande nem universalista quando as preocupações se ficam pela Travessa dos Gatos. Há um problema de dimensão só ultrapassável pela qualidade e capacidade de reação rápida e de intervenção criativa de que andamos arredados.

Dir-se-á que esta pachorra e acomodação cívica e interventiva é paradigmática de uma cidade com boa qualidade de vida, em que não merece a pena estar a inventar preocupações. Também há quem entenda que esta é uma característica das cidades universitárias, mais propensas ao estudo e à reflexão do que à ação. São capazes de ter razão. Talvez se assuma pura e simplesmente a certeza de Jean-Paul Sartre de que “A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota.” Podemos ficar por aqui. O que é certo é que a desumanidade vai passando permanentemente perante os nossos olhos a modos como que um sereno Mondego, sem um tremor de consciência numa cidade que se diz do conhecimento.

Como é bela e enigmática a nossa Coimbra.

PS: Enquanto escrevia este texto, na companhia da música de Paganini, havia paz na rua e um sol radioso a brilhar no Mondego. Em Paris e na Síria havia mais mortos, e o Boko Haram continuava ativo na Nigéria.

(Artigo publicado na edição de 19 de novembro, do Diário de Coimbra)

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

ATRIBUTOS DIVINOS E PROBLEMAS HUMANOS



Longe de mim envolver-me numa querela teológica. Mas, se dúvidas houvesse, agora está confirmado: “Deus nem sempre é amigo”. Por isso não vivemos no mundo perfeito que desejaríamos e acabamos com frequência por tropeçar numa pedra da calçada, dar um trambolhão na banheira ou ver um ministro da administração interna explicar uma catástrofe natural como consequência da fúria demoníaca da Natureza. 

Esta novidade política de imputação divina por fenómenos naturais, ainda que sabendo que não se deve invocar o santo nome de Deus em vão e que não terá sido inspirada nos “Poemas de Deus e o Diabo” do José Régio - teme-se que venha a ter tradução no programa a apresentar por um governo que está no limbo, dado que não foi “batizado” com o número suficiente de votos -, tem o mérito de nos convocar para ler a “Divina Comédia” de Dante, o que não é despiciendo.

Há aqui, de facto, algo de comédia. Sabemos que há países em que existe um ministro para os assuntos religiosos e em que a religião assume um papel central na organização política e na regulação da vida social, mas não havia ideia de que esta pudesse vir a ser uma questão colocada na nossa vida politica, ainda que haja a convicção de que estamos a viver um tempo de milagres. 

Aliás, neste momento, há quem aguarde um de dois milagres tendo por base os mesmos pecadores. Uns esperam o milagre de que a esquerda se entenda e que celebre um acordo histórico que permita um governo estável, de legislatura, e que enterre de vez a maldição de uma esquerda dividida, fazendo-a chegar à idade adulta aos quarenta anos. Outros, pelo contrário, aguardam o milagre de que a esquerda prolongue a sua embirrenta meninice e continue dividida para que habemus mais quatro anos de PàF.

Ora sabendo que há por aí várias tendas dos milagres, especializadas em contra-informação, ficamos sempre preocupados pelo facto de Deus nem sempre ser nosso amigo e de vir a permitir que interesses espúrios se sobreponham a uma solução centrada na resolução dos interesses legítimos dos cidadãos e que permita inverter o caminho de destruição social a que assistimos nos últimos anos.

Não sei o que seria de nós se Deus fosse sempre amigo, mas já agora que seja amigo de uma maioria que tem sofrido na pele as consequências de tantas das políticas blasfemas, preconizadas por num catecismo bilderbergiano, que endeusa o lucro sobre todas as coisas e amesquinha os graves problemas humanos com que nos debatemos, fazendo jus a esta frase do Cântigo Negro:

“A minha glória é esta:
Criar desumanidades!”

(Artigo publicado na edição de 5 de novembro, do Diário de Coimbra)