quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O OUTONO DO GOVERNO




 
Eu já desconfiava, mas esperava pela evidência científica que certifica as perceções. O outono é uma estação do arco-da-velha. Nunca se sabe bem como começam e acabam os dias. Há uma irregularidade meteorológica que nos espevita a falar ainda mais do tempo ao mesmo tempo que as moscas adquirem uma moleza irritante, que as fazem parecer moscardos em traseiro de boi.

Como dizia, a minha desconfiança sobre o outono (a propósito não esquecer de ler ou reler o “Outono do Patriarca” de Gabriel Garcia Márquez), hoje mais do que nunca, vem a ser confirmada e a imprevisibilidade atmosférica transmite-se à política com as proporções do ébola. É por esta altura que se ouvem os primeiros trovões e não há melhores instrumentos para perceber o que se passa, o que se vai passar e o que fazer, até em termos políticos, do que recorrer ao “Borda d’Água” ou ao “Seringador”. 

Mas por quê trazer para aqui esta outoniça questão? É simples. É que sente-se emergir - com inusitada força -, a influência do tempo, dos astros e da tolice política, traduzida em sucessivas trapalhadas e fazendo adivinhar novas e ainda mais caricatas situações num futuro próximo. Não basta o que se tem vindo a passar na Justiça e na Educação para se perceber que em 2015 iremos ter, em todo o seu esplendor, uma enorme confusão com o IRS. 

O problema nem é de opções políticas e da sobrecarga tributária sobre o trabalho e a anorética classe média, é estarmos perante uma tentativa de camuflagem, com uma anunciada solução de “IRS à la carte”, as maldades contidas na proposta de orçamento, sem a mínima consciência dos problemas e dos verdadeiros dramas que vão ser criados na próxima declaração de IRS. É mais uma iniciativa experimentalista que nos vai continuar a tratar como ratinhos cobaias e não como cidadãos respeitáveis.

Não há dúvida que o este outono anuncia, cada vez com mais clareza, o ocaso deste governo, que vai caindo, sem honra nem glória, graças às suas próprias contradições internas e à ausência de um verdadeiro conhecimento da comunidade a quem deveria estar ao serviço.

Aliás, num tempo em que tanto se discute a praxe académica, talvez fosse uma boa ideia praxar os membros do governo para, de acordo com os defensores desta prática, os integrar no país. Pô-los, por aí, pintalgados, a rastejar, a chafurdar na lama e a cantar obscenidades em subserviências ridículas, talvez fosse uma ideia louvável, contudo, já não se vai a tempo de conseguir algum efeito positivo, o ambiente outoniço que se respira por aqueles lados apenas faz desejar que o inverno passe depressa e que chegue a primavera. 

(Artigo publicado na edição de 23 de outubro, do Diário de Coimbra)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O PARTIDO CÁTARO

Parece uma contradição, mas neste tempo de forte contestação aos partidos políticos há um novo partido a nascer a cada dia que passa. O argumento dos seus parturientes é quase sempre de natureza religiosa, querem a nossa salvação a todo o custo, e na sua apresentação há muito da estratégia de marketing usada nas feiras populares, em que tudo é bom e barato. 
 
Confesso a minha admiração por tão voluntariosos e altruístas criadores, apenas lamentando em alguns dos casos, a gritante falta de imaginação emblemática. Podiam, por exemplo, seguir o exemplo americano em que os partidos são identificados pela imagem de animais. O Partido Republicano tem como símbolo o elefante, o Partido Democrático o burro, o Partido da Apatia o esquilo, etc. Para quem não conhece o Partido da Apatia americano, do qual ainda não temos “filial” mas lá chegaremos, apresenta como lema: “Na dúvida resmungue; em dificuldades delegue; quando responsável pondere”, o que diga-se, em abono da verdade, é bastante conforme à ação de muitas das ditas elites políticas que nos governam.

Mas nós somos mais místicos e não nos guiamos por motivações tão comezinhas, ainda que nalguns casos respeitemos máximas do mundo empresarial. Por exemplo, o ministro da Educação e a ministra da Justiça não correm o risco da demissão, porque deacordo com a Lei de Conway “Em qualquer organização há pelo menos uma pessoa que sabe o que se está a passar. Essa pessoa deve ser despedida.” É óbvio que nenhum destes ministros sabe o que se está a passar e, como tal, está seguro no seu posto.

Mas voltemos aos novos partidos e apreciemos os seus fundamentos de pureza, que nos levam a recuar aosséculos XII e XIII e ao movimento religioso que ficou conhecido pelo “catarismo”, protagonizado pelos cátaros ou “puros”, homens perfeitos, que vivam segundo os ideais de pobreza evangélica rejeitando, por exemplo as mordomias do Parlamento Europeu. Dedicavam-se inteiramente às prédicas, aos ensinamentos e ao aconselhamento espiritual dos seus concidadãos, fazendo votos rígidos que se sintetizavam no consolamentum.

Ora, como se vê, há hoje no nosso espectro partidário o surgimento de um certo catarismo político que é uma incógnita eleitoral e que, contrariamente ao que alguns pensam, é extremamente útil não só pela inevitável desmistificação que vai permitir, mas também pela demonstração de que há uma verdadeira ética de serviço político que não se conforma com um verbalismo voluntarista puramente mediático.

Este crescimento partidário de apregoada pureza cátara, que vai em sentido oposto à taxa de desemprego refletindo, portanto, uma “recuperação” da nossa vida político-partidária, faz lembrar, não sei porquê, uma frase que um dia alguém disse, depois de uma ida ao estrangeiro: “A Suiça é tão limpa, tão limpa, que até mete nojo.”

(Artigo publicado na edição de 9.10.2104, do Diário de Coimbra)