quinta-feira, 17 de outubro de 2019

POR AMOR À CIDADE


Hoje há uma nova geografia das cidades que reflete a sua renovada importância, depois de uma certa subalternização, concretamente na Europa, pela adoção de uma paradigmática ideia da Europa das Regiões.

Não serão as “Cidades Invisíveis” de Italo Calvino, que sabe sempre bem ler, são as cidades reais que durante séculos nos trouxeram o desenvolvimento económico, cultural e social e também algo muito importante de que tantas vezes nos esquecemos – a liberdade. Uma liberdade pura, de alto a baixo.

Hoje as cidades apresentam-nos novos ingredientes, novas magias. É a criatividade que se soma aos seus outros atributos e que tantas vezes nos espanta com coisas novas e inesperadas.

Então, quando as cidades nos contam histórias de séculos, que se entretecem com os novos modos de vida da sociedade de informação, e se assumem como espaços de qualidade de vida porque no seu quotidiano se trabalha em função dos seus habitantes e dos seus utilizadores, percebemos porque certas cidades são tão marcantes e verdadeiros ímanes que atraem e marcam de forma especial.

Aliás, as cidades são também, em larga medida o berço de novas políticas e novos políticos sendo notório que destacados políticos e governantes só o são porque fizeram a sua aprendizagem e o seu trabalho enquanto autarcas.

É neste quadro que temos o dever de olhar e pensar a nossa cidade e de ter conta que não são despiciendas muitas das preocupações que tantos sentem relativamente a um ficar para trás de Coimbra no ranking urbano nacional. Para mais, percebendo-se que estamos perante um novo ciclo de políticas urbanas, particularmente virado para as questões ambientais e culturais, mais do que para grandes obras, é preciso alargar horizontes.

Assim, e num quadro político local, que se fragmentou sem proveito nas últimas eleições autárquicas, devem com tempo - tempus fugit –, nomeadamente os partidos estruturados e com uma base consolidada, trabalhar no sentido de equacionar e apresentar aos eleitores uma nova forma de encarar cidade e de lhe dar futuro.

A este desafio acresce o de conseguir combater o cansaço e o descrédito dos eleitores, bem traduzido na elevada taxa de abstenção. É que a nossa cidade pela sua história e pelas suas reconhecidas potencialidades gera expectativas elevadas que se confrontam com dificuldades e debilidades, nem sempre percetíveis, que depois geram desalento e desconforto.

Certo é que neste tempo de tanta, tão rápida e fácil acesso à informação é possível encontrar boas pistas de trabalho tendo sempre em atenção as nossas especificidades. Potenciar e trabalhar o que é genuinamente nosso com criatividade e ambição é, decerto, uma das chaves do sucesso.

Ler “Por Amor às cidades”, de Jacques Le Goff, e depois “O Urbanismo depois da Crise” de Alain Bourdain é uma boa ajuda.





quinta-feira, 3 de outubro de 2019

DISPUTA PEXINEIRA


Um dos episódio de infância, que me vem ciclicamente à memória, tem a ver com uma disputa comercial entre as duas pexineiras – para os camponeses da região os habitantes da Nazaré eram conhecidos por pexins (os homens) e pexineiras (as mulheres) – que vinham vender o peixe à minha aldeia, a uma dezena de quilómetros da Nazaré.

Já lá vão mais de seis décadas. Os tempos eram duros, muito difíceis para aquelas comunidades, e na Nazaré, onde não havia porto de mar, os naufrágios eram frequentes porque os pescadores na luta pela sobrevivência se lançavam ao mar para apanhar algum peixe que permitisse a subsistência da família, mesmo tendo consciência dos riscos que bem conheciam.

Para além as “sete” saias, o que distinguia as mulheres – as pexineiras – era sobretudo a tristeza dos rostos, o sulco das lágrimas e o preto do luto pelos pais, maridos e filhos que o mar lhes roubava.

Sempre que o mar mais bonançoso permitia uma faina mais serena e enchia as redes as pexineiras partiam para as feiras das vilas vizinhas e para as aldeias da região com as suas canastras à cabeça, para vender o peixe.

À minha aldeia chegavam de manhã, na camioneta da carreira, as canastras vinham no tejadilho da camioneta que depois o cobrador descarregava, com uma extraordinária agilidade, para o muro fronteiro à Capela da Senhora do Amparo e dali partiam, a Arlinda e a Vitalina, para a venda.

Não eram bem concorrentes, tinham praticamente clientes certos a quem tratavam como familiares, e muitas vezes nem havia dinheiro no negócio, era uma troca por produtos do campo que iam enchendo a canastra enquanto o peixe ia sendo esvaziado. Aliás, nos duros meses de inverno, quando o mar não admitia incursões, elas levavam os carapaus secos para troca ou um apelo de mãos vazias, a uma garrafa de azeite – era o tempo da safra – ou a uma pequena tora de toucinho – era o tempo das matanças do porco.

Claro que nestes pequenos mundos nem tudo era “paz e amor”. Havia os normais conflitos e disputas das pequenas comunidades e as pexineiras apesar de uma clientela relativamente bem sistematizada não se coibiam de algumas habilidades que dessem algum ganho para a dura causa da subsistência da família.

Assim eram habituais as discussões, que surgiam entre as duas, enquanto aguardavam a camioneta de regresso a casa. Ora para os miúdos da aldeia estes eram momentos extraordinários sobretudo pelas coreografias que pontuavam a discussão, de que diga-se era difícil perceber alguma coisa, fosse pelo conteúdo, fosse pelo forte sotaque. O encanto estava no extraordinário espetáculo de as ver desgrenhar-se, puxarem os cabelo e levantarem as saias enquanto vociferavam uma frente a outra, num espalhafatoso combate gritado.

Depois a carreira chegava, lá entravam as duas e a Senhora do Amparo sossegava no seu altar e nós divertidos íamos às nossas brincadeiras à espera da próxima sessão, que decerto aconteceria na semana seguinte.

Destas cenas, de que guardo a memória de infância, lembro-me muitas vezes nos tempos das campanhas eleitorais.