quinta-feira, 5 de novembro de 2015

ATRIBUTOS DIVINOS E PROBLEMAS HUMANOS



Longe de mim envolver-me numa querela teológica. Mas, se dúvidas houvesse, agora está confirmado: “Deus nem sempre é amigo”. Por isso não vivemos no mundo perfeito que desejaríamos e acabamos com frequência por tropeçar numa pedra da calçada, dar um trambolhão na banheira ou ver um ministro da administração interna explicar uma catástrofe natural como consequência da fúria demoníaca da Natureza. 

Esta novidade política de imputação divina por fenómenos naturais, ainda que sabendo que não se deve invocar o santo nome de Deus em vão e que não terá sido inspirada nos “Poemas de Deus e o Diabo” do José Régio - teme-se que venha a ter tradução no programa a apresentar por um governo que está no limbo, dado que não foi “batizado” com o número suficiente de votos -, tem o mérito de nos convocar para ler a “Divina Comédia” de Dante, o que não é despiciendo.

Há aqui, de facto, algo de comédia. Sabemos que há países em que existe um ministro para os assuntos religiosos e em que a religião assume um papel central na organização política e na regulação da vida social, mas não havia ideia de que esta pudesse vir a ser uma questão colocada na nossa vida politica, ainda que haja a convicção de que estamos a viver um tempo de milagres. 

Aliás, neste momento, há quem aguarde um de dois milagres tendo por base os mesmos pecadores. Uns esperam o milagre de que a esquerda se entenda e que celebre um acordo histórico que permita um governo estável, de legislatura, e que enterre de vez a maldição de uma esquerda dividida, fazendo-a chegar à idade adulta aos quarenta anos. Outros, pelo contrário, aguardam o milagre de que a esquerda prolongue a sua embirrenta meninice e continue dividida para que habemus mais quatro anos de PàF.

Ora sabendo que há por aí várias tendas dos milagres, especializadas em contra-informação, ficamos sempre preocupados pelo facto de Deus nem sempre ser nosso amigo e de vir a permitir que interesses espúrios se sobreponham a uma solução centrada na resolução dos interesses legítimos dos cidadãos e que permita inverter o caminho de destruição social a que assistimos nos últimos anos.

Não sei o que seria de nós se Deus fosse sempre amigo, mas já agora que seja amigo de uma maioria que tem sofrido na pele as consequências de tantas das políticas blasfemas, preconizadas por num catecismo bilderbergiano, que endeusa o lucro sobre todas as coisas e amesquinha os graves problemas humanos com que nos debatemos, fazendo jus a esta frase do Cântigo Negro:

“A minha glória é esta:
Criar desumanidades!”

(Artigo publicado na edição de 5 de novembro, do Diário de Coimbra)

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