quinta-feira, 22 de outubro de 2015

POÉTICA ENOLÓGICA



Há quem diga que o outono é a grande estação gastronómica. Por esta altura quase tudo se conjuga para uma boa refeição com variados produtos da época e o tempo propício a umas garfadas calmas acompanhadas de uma conversa amena. Contudo, este ano que se apregoa de excecional no que toca ao vinho, tem havido um ambiente de tal turbulência política que parece que ninguém consegue comer descansado.

Já lá vai o tempo em que muita coisa se resolvia à mesa, porque um estômago reconfortado é meio caminho para fechar um bom acordo. Por outro lado não há palatos político-partidários e se bem tenho presente o José Quitério, uma figura de referência da nossa gastronomia, que escrevia no Expresso e que foi laureado este ano com o prémio Universidade de Coimbra, via os seus conselhos gastronómicos serem seguidos por comensais de todos os credos e ideologias, apesar de ser um confesso eleitor comunista.

Do que se desconfia, este outono, é que há um feitiço – esta também é uma época de bruxas - que veio estragar almoços e jantares de muita gente, que anda por aí mal disposta e com uma forte azia. Aliás, não têm sido poucos os que nos intervalos das refeições têm tido a coragem de dizer tantos disparates que custa acreditar não tenham sido possuídos por um espírito maligno. De outros desconfia-se que terão bebido um copito a mais e depois como têm mau vinho acabam por dizer coisas impensáveis. 

Mas já que estamos a falar em vinho e na expectativa de que aí virão grandes vinhos, como está anunciado, sugere-se uma calma passagem por uma garrafeira - e hoje há por aí tantas e tão boas – e uma leitura pachorrenta dos contra-rótulos das garrafas. Tenho a certeza de que vão encontrar momentos de encantamento mesmo que depois não consigam, que é o que muitas vezes me acontece, ver o aspeto e sentir os aromas e o gosto que lá estão anunciados. 

É evidente que o aspeto, os aromas e os sabores exigem uma visão razoável, um bom “nariz” e um bom palato, mas mesmos que não se consiga perceber tudo o que nos é prometido há pelo menos uma coisa que fica: a poesia do enólogo. A descrição do vinho é invariavelmente um poema que interroga e desperta os sentidos. 

Assim, no meio de tantas acusações, confusões e acrimónias políticas, nada melhor do que praticar o ritual de ir descobrindo num copo de vinho - para mais que tenha por base uma das nossas castas tradicionais, como o Alvarinho, a Touriga Nacional, a Baga, etc. - a bela poética do vinho, ganhando ao mesmo tempo coragem e paciência para aturar o rodízio de disparates com que um exército emergente de “inteligentes descomprometidos” nos vem brindando neste outono em que as castanhas, embora muito caras, sabem tão bem. 

(Artigo publicado na edição de 22 de outubro, do Diário de Coimbra)

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