sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

DIÁLOGOS NA CÂMARA - VII

- Sabe, meu caro - começou o presidente -, andaram para aí a escrever páginas e páginas sobre corrupção, armados em cientistas da coisa, e a fazer um dito plano de prevenção que não vai resolver nada. É só perder tempo.

- Mas, senhor presidente, temos essa obrigação legal, como bem sabe, e depois há sempre alguma coisa que ajuda a prevenir tentações - respondeu confuso o vice-presidente, que não estava a perceber por que razão o presidente o tinha chamado e lhe falava com aquele ar agastado.

- Olhe o que me espanta é a vossa ingenuidade - retorquiu o presidente. Eu tenho muito mais confiança no meu método, porque, como sabe, a corrupção envolve uma enorme gestão de risco e eu fui sempre alguém que teve muito cuidado com o risco.

- Mas, senhor presidente, sendo assim podemos incluir no nosso plano o seu método, para melhorar a nossa proposta - disse o vice-presidente com um ar satisfeito.

- Tenho de pensar nisso. Sabe, também não podemos estar sempre a ensinar tudo. Aliás  todas essas coisas já deviam ter sido feitas há mais de trinta anos, ou melhor trinta e três anos - sublinhou o presidente.

- Trinta e três anos...? - questionou, intrigado, o vice-presidente.

- Sim, meu caro. Foi com essa idade que Cristo foi crucificado e eu sinto-me um verdadeiro Cristo no meio disto tudo.  Sabe, a minha teoria é que a corrupção só se combate através da análise dos sinais exteriores de riqueza - respondeu, convicto, o presidente.

- Mas, senhor presidente, o que está em causa é um plano de prevenção interno. Não é uma investigação policial -  disse o vice-presidente.
 
- Olhe, é tudo a mesma coisa. Veja - começou o presidente, com ar concentrado - o importante é olhar com atenção para todos os funcionários e ver como andam vestidos. Por exemplo: a qualidade e o corte do fato; tipo do colarinho da camisa; botões normais ou botões de punho; desenho da gravata; tipo de sapatos; etc. Depois era importante saber quantos carros têm e qual a gama, assim como investigar se vivem em apartamentos ou moradias e se têm mais do que uma casa. Também era muito importante saber o tipo de animais de estimação que têm - concordará comigo que não é a mesma coisa ter um canário ou um pastor alemão. Tudo aquilo que indicie riqueza deve ser devidamente analisado. E então no que toca às funcionárias o rigor deve ser ainda maior: brincos; anéis;  gargantilhas; pulseiras. Tudo isso deve ser devidamente analisado.
 
- Mas, senhor presidente, isso é impossível...

- Qual quê, meu caro. Digo-lhe mais. Por exemplo, quando pensarmos num dirigente devemos ter em atenção o clube. Veja, era impensável admitir o presidente do Benfica ou do Porto. Mesmo o do Sporting levantaria dúvidas, agora de outra equipa já seria aceitável. Vá por mim. É através da análise dos sinais exteriores de riqueza que podemos evitar a corrupção aqui na Câmara. E, um conselho final, gravatas de seda e sapatos tipo inglês são sempre de suspeitar - concluiu taxativo o presidente.

O vice-presidente não acreditava no que estava a ouvir. Olhou para os sapatos e para a gravata. Fechou o botão do casaco e saiu em silêncio.

1 comentário:

  1. Interessante o seu post. Dá para pensar, nesta obsessão pela transparência financeira/vulgo sinais exteriores de riqueza, até onde irá chegar. Quanto a mim -é uma opinião, e vale o que vale- neste momento tão grave para a sociedade portuguesa, com mais de 20 por cento de pobres, verdadeiramente, dever-se-ia tomar atenção aos mais carenciados e deixar este circo mediático. Não é que acorrupção deva ser posta de lado, mas, tendo em conta o momento, há outras medidas mais prementes. Enfim...

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