segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

DIÁLOGOS NA CÂMARA - IX

O vice-presidente chegou afogueado e um pouco nervoso. Ficava sempre assim quando o presidente o chamava ao gabinete - Bom dia, senhor presidente, disseram-me que queria falar comigo.

- Feche bem a porta. Vamos ter uma conversa confidencial e não quero que ninguém nos oiça - atirou o presidente num sussurro, sem cumprimentar. Olhe - continuou - como já percebeu eu vivo muito esta casa, não há processo que não conheça, nem dossier que não estude.

O Vice-presidente fingiu concordar e com um sorriso amarelo aguardou novas confidências.

Então o presidente recomeçou - Sabe vivemos tempos de mudança e eu sou-lhe franco estou cansado dos disparates todos que os vários vereadores foram fazendo. Gastaram dinheiro sem sentido, meteram para aí dezenas de pessoas, enfim, foram dando cabo da Câmara sem eu saber... Por tudo isto e porque estou convencido que vão precisar de mim em Lisboa daqui a algum tempo, quero que comece assumir o papel de presidente. Bem, não se assuste. Eu ainda vou estando por cá, mas tenho de tratar da imagem, de fazer conferências sobre o país, tenho de ir largando a pele de presidente de Câmara e de aparecer como político de dimensão nacional. 

O vice-presidente ainda ficou mais vermelho e gaguejando disse - Mas, senhor presidente, eu não estava à espera dessa sua decisão tão cedo...

- Pois é, meu caro, mas do que eu gosto é de Lisboa e não posso deixar de me descartar das asneiras que por aqui foram fazendo. Tenho aliás de renovar as minhas gravatas e de afinar o discurso de ruptura que para já perfilho, mas também quero treinar o discurso da mudança e da unidade. É preciso estar preparado para tudo para chegar rapidamente lá abaixo. Aquilo é outro mundo. Aliás é, verdadeiramente, o meu mundo.

- Senhor presidente, tem de me dar algum tempo. Isto é mais complicado do que eu imaginava - assumiu o vice-presidente.

- Bem, isto fica aqui só entre nós, mas não há tempo a perder e, meu caro, quer queira quer não as coisas vão-se precipitar, ainda que eu vá dando uma mãozinha sempre que haja boas notícias, no resto vai ter de ser você a assumir - concluiu o presidente.

-Mas, senhor presidente, as coisas não vão nada bem e então em termos financeiros isto vai dar para o torto e eu preciso da sua ajuda - arriscou o vice-presidente.
- Ai sim - ripostou o presidente - e então o país!? Sabe como estão as finanças públicas? Não imagina o trabalho que dá olhar para o orçamento do Estado. E o PEC que aí vem. É verdade que antes de o conhecer eu já sei umas coisas sobre ele mas tenho de conhecer pelo menos as siglas e... evitar as olheiras.Já viu o que é alguém aparecer de olheiras na televisão...

O vice-presidente sentia o chão a fugir-lhe debaixo dos pés mas percebeu que estava definitivamente condenado. Os tempos iam ser difíceis.

O presidente afundou-se na cadeira com um ar sonhador enquanto o vice-presidente saía com ar cabisbaixo. 

Nota: Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.

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