quinta-feira, 22 de março de 2018

UM PARTO DE RISCO


Coimbra é vítima de uma maldição. Nas últimas décadas as obras públicas que envolveram a administração central correram mal. Claro que outra coisa não seria de esperar uma vez que foram decidias a contra-gosto e não numa visão prospectiva e de construção de um forte polo urbano no centro do país, que permitisse articular e mitigar as consequências da política de bipolarização Lisboa/Porto.

Apesar das declarações de aposta na descentralização e na harmonização do território nacional, as decisões políticas de investimento são manifestamente influenciadas pelo peso eleitoral e como Coimbra representa poucos votos a hipocrisia decisional tem vindo a impor, contrariamente ao que acontece com outras cidades, um diminuto acesso ao investimento público.

Aliás, parece mesmo que há contra esta cidade uma certa raiva da capital por ela ter sido, durante séculos, uma maternidades das nossas elites. Estaremos perante um castigo que tem levado ao seu gradual esmagamento, contando, não poucas vezes, com a conivência de alguns dos seus “ilustres filhos”, que se acobardam na relação com o poder central, contentado-se com um sorriso e duas palmadas nas costas dadas nos corredores do Terreiro do Paço.

Lembrem-se os dramas com o desenvolvimento do metro ligeiro de superfície para substituir a obsoleta linha da Lousã, que durante anos funcionou com velhas composições “as pandeiretas” compradas no ferro-velho espanhol; a construção da Ponte Europa, rebatizada num caricato fait divers político-partidário; o Hospital Pediátrico que se mais problemas de projecto, de construção e de fiscalização da obra houvesse mais teria tido, para além da localização e da ausência de um adequado acesso à circular externa; do Polo da Saúde, onde se encavalitou a Faculdade de Farmácia, já exígua e com um acesso vergonhoso e um estacionamento inexistente; etc; etc; etc.

Confrontados com a situação insustentável das instalações das duas maternidades aqui existentes, e num momento em que já não é possível adiar mais a resolução do problema, os responsáveis da saúde, mais uma vez por força da pressão dos factos e na ausência de uma visão prospectiva , surgem com a ideia de construir uma nova maternidade no “campus” do Hospital da Universidade Coimbra.

Verdadeiramente, o que parece é o que se pretende ali instalar mais não é do que um serviço do hospital e não construir uma unidade de saúde autónoma; estruturada técnica e funcionalmente; com autonomia de gestão; orçamento próprio; quadro de pessoal; etc.

Ora não se concebe como é que possível construir mais um estabelecimento de saúde num espaço saturado, que é um quebra-cabeças em termos de acessibilidades e de estacionamento, constituindo-se um verdadeiro “polo de doença” para os cidadãos de Coimbra que residem nas proximidades e para os utentes e familiares que a ele recorrem.

Aliás, se o Polo II da Universidade de Coimbra, que é uma confusão arquitectónica, nunca viu o seu pleno desenvolvimento em termos de envolvente e no pleno aproveitamento dos terrenos que o bordejam, permitindo-lhe uma qualidade ambiental própria de um moderno campus universitário, o Polo III, o Polo da Saúde, é verdadeiramente inqualificável no que toca à desarticulação das instalações e equipamentos ali localizados, alguns bem recentes, à sua inserção no tecido urbano e aos acessos e estacionamento.

Se a cidade de Coimbra muito deve aos seus serviços de saúde paga-o com sofrimento diário por ausência do adequado planeamento do tecido urbano em que se inserem.
Mas na ponderação que parece se pretende adoptar também não se conhece se foi tida em conta a existência do espaçoso terreno envolvente do Hospital do Covões, que também faz parte do Centro Universitário e Hospitalar de Coimbra, e é do património do estado.

Talvez a problemática orgânica e funcional, inerente à criação do Centro Hospitalar de Coimbra, que levou à junção dos Hospitais da Universidade com o Hospital dos Covões e que obviamente tende ao encerramento deste último hospital apesar de aí continuarem a ser feitos investimentos, leve a que não se queira ponderar esta hipótese. Talvez, também, uma visão de poder e de comodidade corporativa constitua um travão inconfessado a instalar uma maternidade na margem esquerda do Mondego a alguns quilómetros do centro da cidade e que para alguns é uma periferia rural.

A verdade é que se está a decidir com enorme leviandade, no século XXI, a construção de raiz de uma importante infraestrutura do Serviço Nacional de Saúde e isso é preocupante. Nas últimas eleições autárquicas o presidente da Câmara eleito, manifestou a opinião de que a nova maternidade deve ser construída no perímetro do Hospital dos Covões, o que não parece ter merecido qualquer consideração.

Perante esta situação, que configura um parto de risco, torna-se essencial a análise e o pronunciamento de deputados, autarcas e da generalidade dos cidadãos, a quem a obra se destina e que os afecta directamente e não tomar qualquer decisão que comprometa irremediavelmente uma obra de futuro, onde vão nascer os novos cidadãos que aqui vão viver e sofrer as consequências das decisões que agora se tomam.

A nova maternidade de Coimbra tem de ser uma obra de qualidade, digna desta cidade e que honre os obreiros do Serviço Nacional de Saúde, daqui oriundos, concretamente o Dr. António Arnaut e o Professor Mário Mendes, médico obstetra, cujo nome lhe ficaria muito bem.

(Artigo publicado no Público, em 18 de março de 2018)

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