quinta-feira, 3 de outubro de 2019

DISPUTA PEXINEIRA


Um dos episódio de infância, que me vem ciclicamente à memória, tem a ver com uma disputa comercial entre as duas pexineiras – para os camponeses da região os habitantes da Nazaré eram conhecidos por pexins (os homens) e pexineiras (as mulheres) – que vinham vender o peixe à minha aldeia, a uma dezena de quilómetros da Nazaré.

Já lá vão mais de seis décadas. Os tempos eram duros, muito difíceis para aquelas comunidades, e na Nazaré, onde não havia porto de mar, os naufrágios eram frequentes porque os pescadores na luta pela sobrevivência se lançavam ao mar para apanhar algum peixe que permitisse a subsistência da família, mesmo tendo consciência dos riscos que bem conheciam.

Para além as “sete” saias, o que distinguia as mulheres – as pexineiras – era sobretudo a tristeza dos rostos, o sulco das lágrimas e o preto do luto pelos pais, maridos e filhos que o mar lhes roubava.

Sempre que o mar mais bonançoso permitia uma faina mais serena e enchia as redes as pexineiras partiam para as feiras das vilas vizinhas e para as aldeias da região com as suas canastras à cabeça, para vender o peixe.

À minha aldeia chegavam de manhã, na camioneta da carreira, as canastras vinham no tejadilho da camioneta que depois o cobrador descarregava, com uma extraordinária agilidade, para o muro fronteiro à Capela da Senhora do Amparo e dali partiam, a Arlinda e a Vitalina, para a venda.

Não eram bem concorrentes, tinham praticamente clientes certos a quem tratavam como familiares, e muitas vezes nem havia dinheiro no negócio, era uma troca por produtos do campo que iam enchendo a canastra enquanto o peixe ia sendo esvaziado. Aliás, nos duros meses de inverno, quando o mar não admitia incursões, elas levavam os carapaus secos para troca ou um apelo de mãos vazias, a uma garrafa de azeite – era o tempo da safra – ou a uma pequena tora de toucinho – era o tempo das matanças do porco.

Claro que nestes pequenos mundos nem tudo era “paz e amor”. Havia os normais conflitos e disputas das pequenas comunidades e as pexineiras apesar de uma clientela relativamente bem sistematizada não se coibiam de algumas habilidades que dessem algum ganho para a dura causa da subsistência da família.

Assim eram habituais as discussões, que surgiam entre as duas, enquanto aguardavam a camioneta de regresso a casa. Ora para os miúdos da aldeia estes eram momentos extraordinários sobretudo pelas coreografias que pontuavam a discussão, de que diga-se era difícil perceber alguma coisa, fosse pelo conteúdo, fosse pelo forte sotaque. O encanto estava no extraordinário espetáculo de as ver desgrenhar-se, puxarem os cabelo e levantarem as saias enquanto vociferavam uma frente a outra, num espalhafatoso combate gritado.

Depois a carreira chegava, lá entravam as duas e a Senhora do Amparo sossegava no seu altar e nós divertidos íamos às nossas brincadeiras à espera da próxima sessão, que decerto aconteceria na semana seguinte.

Destas cenas, de que guardo a memória de infância, lembro-me muitas vezes nos tempos das campanhas eleitorais.

Sem comentários:

Enviar um comentário