quinta-feira, 12 de março de 2015

RELOJOARIA POLÍTICA



Ir à Baixa de Coimbra é não só um prazer mas também um exercício de perceção da nossa realidade coletiva, já para não falar na hipótese de uma excelente refeição ou numa compra surpreendente.
 
Não consigo compreender como é que há quem deteste a Baixa fazendo da Praça do Comércio e de alguns recantos mágicos parque de estacionamento. Gosto definitivamente da nossa baixa e tenho encontrado boas razões para continuar a percorrê-la. Por exemplo, é sempre com imenso agrado que vou ao relojoeiro de que sou um velho cliente, tratar da alimentação dos relógios mais recentes ou do arranjo daqueles que ainda fazem um sonoro tic-tac e cujos mecanismos apresentam maleitas de velhice, porque encontro um relojoeiro sempre afável, disponível e atencioso, que faz jus a um atendimento personalizado e tradicional, que sabe e dispõe bem. 

Há dias, enquanto aguardava para ser atendido, olhando para os relógios expostos, senti-me estranhamente num universo político-partidário. Com efeito, havia modelos de relógio mais velhos e mais novos, todos tentavam dar horas certas mas quase todos tinham, em maior ou menor grau, diferenças entre si, mesmo sendo da mesma marca. Obviamente que cada um tinha a verdade da sua hora e percebia-se que era difícil conseguir que todos ao mesmo tempo a dessem com garantida exatidão. Era uma reunião do partido do tempo que se batia por afirmar a hora exata mas em que havia uma enorme dificuldade de acerto.

Olhando com mais atenção viam-se vários modelos de diversas marcas sabendo-se que o que os distinguia e lhes garantia fiabilidade eram sobretudo as “máquinas” que cada um tinha escondido no seu interior, apesar de alguns serem obviamente mais vistosos, sofisticados ou barulhentos. Havia ainda aqueles relógios de cuco que teimam em irromper por um pequena porta e nos brindam com a fala de pássaro que tão difícil é ouvir na natureza. E os relógios de sala, majestosos, imponentes, estáticos e pesados e, por isso, inevitavelmente arrumados a um canto.

Claro que havia marcas mais clássicas e outras mais recentes, aliás, de tempos a tempos vão aparecendo novas marcas (tal como teimam em aparecer novos partidos), com novos modelos, mas sempre com o mesmo problema: é quase impossível acertá-los rigorosamente. Também por ali havia relógios que tendo uma determinada referência de origem as suas peças, mais ou menos escondidas, vinham de variados sítios.

Depois de atendido, com a habitual simpatia e cordialidade, desci à rua e de repente lembrei-me que aquela era a hora em que por ali passavam, há alguns séculos, as Procissões da Penitência e do Enterro, em que os homens imperfeitos se penitenciavam dos seus atos, palavras e omissões, acompanhados por cantos “fúnebres e sentidos huis”.

Mais ainda, era a hora a que habitualmente passam os candidatos, com o seu séquito, nas campanhas eleitorais.

(Artigo publicado na edição de 12 de março de 2015, do Diário de Coimbra)

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