Longe
de mim envolver-me numa querela teológica. Mas, se dúvidas houvesse, agora está
confirmado: “Deus nem sempre é amigo”. Por isso não vivemos no mundo perfeito
que desejaríamos e acabamos com frequência por tropeçar numa pedra da calçada,
dar um trambolhão na banheira ou ver um ministro da administração interna
explicar uma catástrofe natural como consequência da fúria demoníaca da Natureza.
Esta
novidade política de imputação divina por fenómenos naturais, ainda que sabendo
que não se deve invocar o santo nome de Deus em vão e que não terá sido
inspirada nos “Poemas de Deus e o Diabo” do José Régio - teme-se que venha a
ter tradução no programa a apresentar por um governo que está no limbo, dado
que não foi “batizado” com o número suficiente de votos -, tem o mérito de nos
convocar para ler a “Divina Comédia” de Dante, o que não é despiciendo.
Há
aqui, de facto, algo de comédia. Sabemos que há países em que existe um
ministro para os assuntos religiosos e em que a religião assume um papel
central na organização política e na regulação da vida social, mas não havia
ideia de que esta pudesse vir a ser uma questão colocada na nossa vida politica,
ainda que haja a convicção de que estamos a viver um tempo de milagres.
Aliás,
neste momento, há quem aguarde um de dois milagres tendo por base os mesmos
pecadores. Uns esperam o milagre de que a esquerda se entenda e que celebre um
acordo histórico que permita um governo estável, de legislatura, e que enterre
de vez a maldição de uma esquerda dividida, fazendo-a chegar à idade adulta aos
quarenta anos. Outros, pelo contrário, aguardam o milagre de que a esquerda prolongue
a sua embirrenta meninice e continue dividida para que habemus mais quatro anos de PàF.
Ora
sabendo que há por aí várias tendas dos milagres, especializadas em
contra-informação, ficamos sempre preocupados pelo facto de Deus nem sempre ser
nosso amigo e de vir a permitir que interesses espúrios se sobreponham a uma
solução centrada na resolução dos interesses legítimos dos cidadãos e que
permita inverter o caminho de destruição social a que assistimos nos últimos
anos.
Não
sei o que seria de nós se Deus fosse sempre amigo, mas já agora que seja amigo
de uma maioria que tem sofrido na pele as consequências de tantas das políticas
blasfemas, preconizadas por num catecismo bilderbergiano, que endeusa o lucro
sobre todas as coisas e amesquinha os graves problemas humanos com que nos
debatemos, fazendo jus a esta frase do Cântigo Negro:
“A minha glória
é esta:
Criar desumanidades!”
Criar desumanidades!”
(Artigo
publicado na edição de 5 de novembro, do Diário de Coimbra)
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