Ir
à Baixa de Coimbra é não só um prazer mas também um exercício de perceção da
nossa realidade coletiva, já para não falar na hipótese de uma excelente
refeição ou numa compra surpreendente.
Não
consigo compreender como é que há quem deteste a Baixa fazendo da Praça do
Comércio e de alguns recantos mágicos parque de estacionamento. Gosto
definitivamente da nossa baixa e tenho encontrado boas razões para continuar a
percorrê-la. Por exemplo, é sempre com imenso agrado que vou ao relojoeiro de
que sou um velho cliente, tratar da alimentação dos relógios mais recentes ou
do arranjo daqueles que ainda fazem um sonoro tic-tac e cujos mecanismos
apresentam maleitas de velhice, porque encontro um relojoeiro sempre afável,
disponível e atencioso, que faz jus a um atendimento personalizado e
tradicional, que sabe e dispõe bem.
Há
dias, enquanto aguardava para ser atendido, olhando para os relógios expostos,
senti-me estranhamente num universo político-partidário. Com efeito, havia
modelos de relógio mais velhos e mais novos, todos tentavam dar horas certas
mas quase todos tinham, em maior ou menor grau, diferenças entre si, mesmo
sendo da mesma marca. Obviamente que cada um tinha a verdade da sua hora e percebia-se
que era difícil conseguir que todos ao mesmo tempo a dessem com garantida exatidão.
Era uma reunião do partido do tempo que se batia por afirmar a hora exata mas
em que havia uma enorme dificuldade de acerto.
Olhando
com mais atenção viam-se vários modelos de diversas marcas sabendo-se que o que
os distinguia e lhes garantia fiabilidade eram sobretudo as “máquinas” que cada um tinha
escondido no seu interior, apesar de alguns serem obviamente mais vistosos, sofisticados
ou barulhentos. Havia ainda aqueles relógios de cuco que teimam em irromper por
um pequena porta e nos brindam com a fala de pássaro que tão difícil é ouvir na
natureza. E os relógios de sala, majestosos, imponentes, estáticos e pesados e,
por isso, inevitavelmente arrumados a um canto.
Claro
que havia marcas mais clássicas e outras mais recentes, aliás, de tempos a
tempos vão aparecendo novas marcas (tal como teimam em aparecer novos partidos),
com novos modelos, mas sempre com o mesmo problema: é quase impossível
acertá-los rigorosamente. Também por ali havia relógios que tendo uma
determinada referência de origem as suas peças, mais ou menos escondidas,
vinham de variados sítios.
Depois
de atendido, com a habitual simpatia e cordialidade, desci à rua e de repente
lembrei-me que aquela era a hora em que por ali passavam, há alguns séculos, as
Procissões da Penitência e do Enterro, em que os homens imperfeitos se
penitenciavam dos seus atos, palavras e omissões, acompanhados por cantos
“fúnebres e sentidos huis”.
Mais ainda, era a hora a que habitualmente passam
os candidatos, com o seu séquito, nas campanhas eleitorais.
(Artigo
publicado na edição de 12 de março de 2015, do Diário de Coimbra)
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